MEDO 1994
94-12-31-fi=ficções inventadas-8370-sv-2-cartas-manifest
[31-12-1994]
Na pele de vítima, eu podia então contar como envelheci cheio de medo:
medo dos camiões-cisterna que atravessam a avenida infante d. henrique a 150 à hora porque têm de chegar antes da loja fechar,
medo das vacinas que criam todas as futuras doenças infecto-contagiosas,
medo dos sismos provocados por rebentamentos termo-nucleares subterrâneos,
medo das transfusões de sangue que pode (e deve) estar contaminado,
medo das escutas telefónicas que me podem devassar a minha privacidade,
medo dos vírus que, segundo a Ana Gershfeld, especialista em vírus, andam por tudo quanto é sítio e não olham a meios para atingir os seus fins,
medo dos ovos contaminados de salmonelas,
medo das salmonelas contaminadas de ovos,
medo dos incêndios de Verão que alguém manda atear,
medo dos que querem fabricar Alqueva e afundar Portugal,
medo de respirar o ar que vem carregado de todos os chumbos que sobraram da Faculdade de Letras e do ISP,
medo de atravessar as ruas de Lisboa,
medo de andar nos passeios de Lisboa,
medo dos espiões que se metem como piolho por costura,
medo do escudo descer e eu perder todas as economias que tenho ,
medo das anestesias que podem, mais tarde ou mais cedo, provocar esclerose em placas,
medo dos monitores radioactivos que nos espreitam por todos os cantos,
medo do cancro provocado pelos monitores radioactivos,
medo das cataratas provocadas pelos monitores radioactivos,
medo do Álvaro Barreto, plantador número 1 de eucaliptos,
medo de que Almaraz rebente de vez e a gente tenha em Lisboa de beber água da poça porque a do Bode ultrapassou o limite da radioactividade,
medo da segurança social entrar em bancarrota antes de me pagar o que me deve,
medo da febre puerperal,
medo das armas brancas e das armas pretas,
medo das trovoadas electromagnéticas,
medo das enchentes,
medo do incêndio e das explosões controladas em Cabo Ruivo,
medo do Pedro Ferraz da Costa, medo do Paulo Portas,
medo da crítica literária que me matou todas as veleidades de ser poeta comó Herberto,
medo do crítico João Lopes que matou as minhas veleidades de crítico cinematográfico,
medo do crítico Gastão Cruz que matou todas as minhas veleidades literárias de ensaista,
medo do Artur Portela Filho que matou todas as minhas veleidades de crítico,
medo de morrer vivo e ser enterrado morto,
medo de acabar a telenovela na televisão,
medo de todos os recordes do mundo (que me fazem sentir mais pequeno do que uma pulga), medo de entrar na Livraria Bucholz e ver desabar sobre mim toda a cultura do mundo com o Eduardo Prado Coelho a rebolar-se lá dentro
medo de apanhar uma pneumonia,
medo dos caçadores, medo dos médicos e da medicina,
medo dos bandos armados, medo dos cirurgiões e dos transplantes, medo que me tirem um órgão porque me esqueci de preencher a declaração em contrário,
medo de que o senhorio leve a sua avante de me tirar a casa,
medo da avenida Infante D. Henrique, por onde passam os triliões de produtos perigosos que circulam em portugal,
medo do fumo do cigarro que os colegas me atiram pró cérebro,
medo (claro) do buraco do ozono e de ficarmos todos numa torradeira de ultravioletas,
medo de um «crash» na bolsa de Nova Iorque e de voltarmos todos, num segundo, à fase tribal,
medo de falir a seguradora onde tenho o meu seguro de vida,
medo de ir parar ao serviço de urgência de um hospital, medo dos hospitais,
medo da gripe, medo do cancro, medo de naufragar num cacilheiro do Tejo, medo das transfusões de sangue,
medo de a ponte Salazar já com rachas cair como caiu o propriamente dito,
medo de ir ao fundo metido no Titanic,
medo de nunca mais ninguém se lembrar de mim quando morrer,
medo dos micróbios, medo das serpentes, medo dos leões, medo dos burocratas e dos tecno-burocratas e dos tecnocratas propriamente ditos,
medo de estar desempregado, medo de estar no emprego,
medo de vir um dia a ficar na bicha da sopa dos pobres ali ao Intendente,
medo de sair, medo de entrar, medo de atravessar o Marquês de Pombal,
medo de partir uma perna ao descer do autocarro,
medo de não ter medo de me atirar para debaixo do comboio ali em Pedrouços,
medo de não apanhar o comboio das cinco e só vir um lá para as sete e 10,
medo de desmineralizar os ossos com o açúcar que vorazmente como,
medo de passar pelo Terreiro do Paço e ver armada a plataforma para o Pedro Abrunhosa gritar a milhões de portugueses, medo do Abrunhosa,
medo do Clinton e dos que se lhe atiram às canelas,
medo de ficar sozinho no mundo, sem pai, sem mãe, sem irmão, sem mulher,
medo de morrer à sede quando a indústria pesada tiver bebido toda a água potável disponível,
medo da indústria pesada e dos ambientalistas, amigos da Natureza & ecologistas que arranjam sempre maneira de justificar os delitos industriais e o tecno-terror instalado,
medo de ter que fazer uma intervenção cirúrgica ao cérebro,
medo de uma análise de raios X, medo de contrair leucemia por causa da radioactividade, medo dos monitores de televisão, medo dos ponteiros luminosos, medo dos monitores de computador, medo dos relâmpagos das fotocopiadoras e das cataratas que provocam,
medo da sida provocada por antibioterapia sistemática,
medo da cortisona e dos ossos desfeitos pela cortisona,
medo do progresso sob a forma de injecção intravenosa e indolor,
medo dos que, em nome dos sagrados interesses da pátria, a vão destruindo em nome do progresso e do sucesso,
medo de que o Jardim Gonçalves me lance uma OPA como lançou ao Belmiro,
medo da guerra do Golfo e de se acabar o gás para o meu banho quente,
medo de ter que tomar duche frio,
medo do mecenato que vem defender a natureza depois de promover a cultura,
medo dos seropositivos que andam por aí à solta sem ninguém que os meta no asilo,
medo de ser eu a pagar os custos do famoso binómio poluidor-pagador e já que os poluidores declararam todos à France Press que poluiam com muito gosto e que não pagavam,
medo de o Cunhal ressuscitar numa manhã de nevoeiro e meter-nos a todos na Sibéria,
medo dos autocarros laranja que andaram a matar pessoas,
medo do Veiga Simão que comia centrais nucleares ao pequeno almoço e desde pequenino,
medo do Almeida Santos que ameaça de extermínio os fundamentalistas da ecologia como eu,
medo do Júlio Machado Vaz
medo também do Miguel Esteves Cardoso pela mesma razão,
medo de que a televisão me caia um dia destes em cima, tão carregada está de pecados contra o espírito santo,
medo de a fome se estender aos países do mundo rico, medo de ficarmos de tanga, medo do regresso à fase tribal a que uma civilização como esta inevitavelmente conduzirá,
medo de ser atropelado à saída d'«A Capital» por um dos milhares de camiões-cisternas de 10 mil toneladas que por aqui fazem passagem à velocidade da luz,
medo de não me sair o totoloto nunca mais e de já ser velhinho, corcovado e ainda andar a jogar no totoloto à espera do futuro,
medo de levar uma sova de algum marginal que me confunda com o Primeiro-Ministro por causa do bigode,
medo de ir morar para o Bairro da Lata e ter por vizinho o Saldanha da Gama, ou quiçá algum fugitivo de Alcoentre como o Manuel Monteiro
medo das iluminações de Natal que me fazem lembrar o desperdício de energia e as campanhas dos ecologistas a favor da conservação
medo da publicidade que compra consciências e as torna mais rentáveis no mercado de capitais
medo dos impostos ultrapassarem os 100% dos meus rendimentos
medo dos fiscais dos impostos e dos bilhetinhos postais da burocracia com ameaças se não cumprir o prazo
medo dos homens fortes e vencedores deste país, incluindo os opinion makers que fazem e desfazem cérebros
medo porque não sei o que vai ser desses ricos de espírito quando estiverem do outro lado a prestar contas no tribunal de Deus
medo dos heróis de consciência que têm a consciência pesada por causa das audiometrias e das sondagens de opinião que promovem a opinião pública que depois é outra vez sondada
***
[31-12-1994]
INVENTÁRIO DO MEDO - III
Na pele de vítima, eu podia então contar como envelheci cheio de medo:
medo dos camiões-cisterna que atravessam a avenida infante d. henrique a 150 à hora porque têm de chegar antes da loja fechar,
medo das vacinas que criam todas as futuras doenças infecto-contagiosas,
medo dos sismos provocados por rebentamentos termo-nucleares subterrâneos,
medo das transfusões de sangue que pode (e deve) estar contaminado,
medo das escutas telefónicas que me podem devassar a minha privacidade,
medo dos vírus que, segundo a Ana Gershfeld, especialista em vírus, andam por tudo quanto é sítio e não olham a meios para atingir os seus fins,
medo dos ovos contaminados de salmonelas,
medo das salmonelas contaminadas de ovos,
medo dos incêndios de Verão que alguém manda atear,
medo dos que querem fabricar Alqueva e afundar Portugal,
medo de respirar o ar que vem carregado de todos os chumbos que sobraram da Faculdade de Letras e do ISP,
medo de atravessar as ruas de Lisboa,
medo de andar nos passeios de Lisboa,
medo dos espiões que se metem como piolho por costura,
medo do escudo descer e eu perder todas as economias que tenho ,
medo das anestesias que podem, mais tarde ou mais cedo, provocar esclerose em placas,
medo dos monitores radioactivos que nos espreitam por todos os cantos,
medo do cancro provocado pelos monitores radioactivos,
medo das cataratas provocadas pelos monitores radioactivos,
medo do Álvaro Barreto, plantador número 1 de eucaliptos,
medo de que Almaraz rebente de vez e a gente tenha em Lisboa de beber água da poça porque a do Bode ultrapassou o limite da radioactividade,
medo da segurança social entrar em bancarrota antes de me pagar o que me deve,
medo da febre puerperal,
medo das armas brancas e das armas pretas,
medo das trovoadas electromagnéticas,
medo das enchentes,
medo do incêndio e das explosões controladas em Cabo Ruivo,
medo do Pedro Ferraz da Costa, medo do Paulo Portas,
medo da crítica literária que me matou todas as veleidades de ser poeta comó Herberto,
medo do crítico João Lopes que matou as minhas veleidades de crítico cinematográfico,
medo do crítico Gastão Cruz que matou todas as minhas veleidades literárias de ensaista,
medo do Artur Portela Filho que matou todas as minhas veleidades de crítico,
medo de morrer vivo e ser enterrado morto,
medo de acabar a telenovela na televisão,
medo de todos os recordes do mundo (que me fazem sentir mais pequeno do que uma pulga), medo de entrar na Livraria Bucholz e ver desabar sobre mim toda a cultura do mundo com o Eduardo Prado Coelho a rebolar-se lá dentro
medo de apanhar uma pneumonia,
medo dos caçadores, medo dos médicos e da medicina,
medo dos bandos armados, medo dos cirurgiões e dos transplantes, medo que me tirem um órgão porque me esqueci de preencher a declaração em contrário,
medo de que o senhorio leve a sua avante de me tirar a casa,
medo da avenida Infante D. Henrique, por onde passam os triliões de produtos perigosos que circulam em portugal,
medo do fumo do cigarro que os colegas me atiram pró cérebro,
medo (claro) do buraco do ozono e de ficarmos todos numa torradeira de ultravioletas,
medo de um «crash» na bolsa de Nova Iorque e de voltarmos todos, num segundo, à fase tribal,
medo de falir a seguradora onde tenho o meu seguro de vida,
medo de ir parar ao serviço de urgência de um hospital, medo dos hospitais,
medo da gripe, medo do cancro, medo de naufragar num cacilheiro do Tejo, medo das transfusões de sangue,
medo de a ponte Salazar já com rachas cair como caiu o propriamente dito,
medo de ir ao fundo metido no Titanic,
medo de nunca mais ninguém se lembrar de mim quando morrer,
medo dos micróbios, medo das serpentes, medo dos leões, medo dos burocratas e dos tecno-burocratas e dos tecnocratas propriamente ditos,
medo de estar desempregado, medo de estar no emprego,
medo de vir um dia a ficar na bicha da sopa dos pobres ali ao Intendente,
medo de sair, medo de entrar, medo de atravessar o Marquês de Pombal,
medo de partir uma perna ao descer do autocarro,
medo de não ter medo de me atirar para debaixo do comboio ali em Pedrouços,
medo de não apanhar o comboio das cinco e só vir um lá para as sete e 10,
medo de desmineralizar os ossos com o açúcar que vorazmente como,
medo de passar pelo Terreiro do Paço e ver armada a plataforma para o Pedro Abrunhosa gritar a milhões de portugueses, medo do Abrunhosa,
medo do Clinton e dos que se lhe atiram às canelas,
medo de ficar sozinho no mundo, sem pai, sem mãe, sem irmão, sem mulher,
medo de morrer à sede quando a indústria pesada tiver bebido toda a água potável disponível,
medo da indústria pesada e dos ambientalistas, amigos da Natureza & ecologistas que arranjam sempre maneira de justificar os delitos industriais e o tecno-terror instalado,
medo de ter que fazer uma intervenção cirúrgica ao cérebro,
medo de uma análise de raios X, medo de contrair leucemia por causa da radioactividade, medo dos monitores de televisão, medo dos ponteiros luminosos, medo dos monitores de computador, medo dos relâmpagos das fotocopiadoras e das cataratas que provocam,
medo da sida provocada por antibioterapia sistemática,
medo da cortisona e dos ossos desfeitos pela cortisona,
medo do progresso sob a forma de injecção intravenosa e indolor,
medo dos que, em nome dos sagrados interesses da pátria, a vão destruindo em nome do progresso e do sucesso,
medo de que o Jardim Gonçalves me lance uma OPA como lançou ao Belmiro,
medo da guerra do Golfo e de se acabar o gás para o meu banho quente,
medo de ter que tomar duche frio,
medo do mecenato que vem defender a natureza depois de promover a cultura,
medo dos seropositivos que andam por aí à solta sem ninguém que os meta no asilo,
medo de ser eu a pagar os custos do famoso binómio poluidor-pagador e já que os poluidores declararam todos à France Press que poluiam com muito gosto e que não pagavam,
medo de o Cunhal ressuscitar numa manhã de nevoeiro e meter-nos a todos na Sibéria,
medo dos autocarros laranja que andaram a matar pessoas,
medo do Veiga Simão que comia centrais nucleares ao pequeno almoço e desde pequenino,
medo do Almeida Santos que ameaça de extermínio os fundamentalistas da ecologia como eu,
medo do Júlio Machado Vaz
medo também do Miguel Esteves Cardoso pela mesma razão,
medo de que a televisão me caia um dia destes em cima, tão carregada está de pecados contra o espírito santo,
medo de a fome se estender aos países do mundo rico, medo de ficarmos de tanga, medo do regresso à fase tribal a que uma civilização como esta inevitavelmente conduzirá,
medo de ser atropelado à saída d'«A Capital» por um dos milhares de camiões-cisternas de 10 mil toneladas que por aqui fazem passagem à velocidade da luz,
medo de não me sair o totoloto nunca mais e de já ser velhinho, corcovado e ainda andar a jogar no totoloto à espera do futuro,
medo de levar uma sova de algum marginal que me confunda com o Primeiro-Ministro por causa do bigode,
medo de ir morar para o Bairro da Lata e ter por vizinho o Saldanha da Gama, ou quiçá algum fugitivo de Alcoentre como o Manuel Monteiro
medo das iluminações de Natal que me fazem lembrar o desperdício de energia e as campanhas dos ecologistas a favor da conservação
medo da publicidade que compra consciências e as torna mais rentáveis no mercado de capitais
medo dos impostos ultrapassarem os 100% dos meus rendimentos
medo dos fiscais dos impostos e dos bilhetinhos postais da burocracia com ameaças se não cumprir o prazo
medo dos homens fortes e vencedores deste país, incluindo os opinion makers que fazem e desfazem cérebros
medo porque não sei o que vai ser desses ricos de espírito quando estiverem do outro lado a prestar contas no tribunal de Deus
medo dos heróis de consciência que têm a consciência pesada por causa das audiometrias e das sondagens de opinião que promovem a opinião pública que depois é outra vez sondada
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