HEDONISMO 1989
1-2 - 89-05-21-ac-cf> hedonismo-1-ac-cf > ac a cf
O MEU ÓDIO A HEDONISTAS E BEATOS(*)
(*) Este texto de Afonso Cautela nem sequer como carta a CF foi talvez enviado, permanecendo, portanto, totalmente inédito
21-5-1989
A propósito do Krishnamurti, em que falámos, encontrei essa passagem no Virgílio Ferreira, página 351, do "Conta-Corrente-I".
Há uma referência à Beatriz, que tu também deves conhecer, pelos idos de Évora (Évora será uma coisa, pelo menos, que temos em comum, não?).
Parece-me a opinião do Virgílio demasiado severa, e quando ele fala do "beato manso" estou e não estou de acordo com ele. "Beatismo" é a palavra que costumo usar para designar uma das coisas que visceralmente mais detesto: toda a pretensão predicadora, moralista, “deves fazer isto” e "deves fazer aquilo”, enfim, a constante pregação em vista à morigeração dos costumes.
Se há peso-pesadelo na chamada nossa cultura ocidental e cristã, não sei se este - da predicação e do discurso-sermão - não será um dos mais arreigados.
Ora o esforço de Krishnamurti, colocando-se , desde logo, na perspectiva de uma fonte cultural descontaminada de poluições cristãs ocidentais moralizadoras, terá muita coisa criticável, a meu ver, mas não o seu beatismo: nesse caso o que diríamos de todo o ensaísmo ocidental, que é uma beatisse pegada.
Mas quando falo de "beatismo" como uma das coisas a que voto maior aversão, estou ainda a pensar num tal conceito de optimismo ou mesmo de alegria, com o qual, de facto, não consigo alinhar.
Ouvindo agora mesmo um extracto da "Ode à Alegria", da Nona Sinfonia de Beethoven( que os eurocratas elegeram em música publicitária da campanha eleitoral ao Parlamento de Estrasburgo...), penso mais uma vez o que tenho dito ou escrito em outras circunstâncias: a Alegria é algo de tão sagrado que temos que ter algum cuidado na palavra. Um pouco como a palavra Deus, um pouco como a palavra Amor, um pouco como a palavra Paz, um pouco como a palavra Liberdade.
Somos, neste caldo cultural em que estamos, demasiado levianos no uso de certas palavras, cuja carga de sagrado nos devia aconselhar maior prudência.
Falaste-me de uma viagem que fizeste (aos Açores, não foi?) e da "alegria" que apreciaste nos companheiros de viagem, por contraste ao que tínhamos referido como o meu "tremendismo", "pessimismo", "negativismo".
A questão é muito melindrosa, Carlos, e vou tentar tocá-la com o máximo de delicadezas: alegria que não seja arrancada da profunda tristeza que é a vida, que sentido pode ter?
Bach exemplifica, na música, o que eu gostaria de dizer a este respeito. Qualquer conceito extrai-se, sempre, do seu contrário: a saúde é o outro lado da doença, o prazer é o outro lado da dor, a liberdade é o outro lado da alienação, o dia é o outro lado da noite, (para outras dicotomias, ver "Diccionario de Sinónimos e Antonimos,"Ed Oceano, Barcelona, 198&).
E o que chamo "beatismo" , de um modo geral, é a atitude dos que se colocam só num termo desta dialéctica - geralmente considerado o "bom" - como se não existisse o outro termo, que é então repelido como o "mau".
O que eu penso - e é uma das démarches mais terríveis de toda a minha vida - é que aprender a viver é aprender a amar, com igual intensidade, o "bom" e o "mau", o "puro" e o "perverso", a "doença' e a "saúde", a "alegria" e a "tristeza”, a "esperança" e o “desespero"...
Costumo dizer, glosando esta minha estranha e rara filosofia: que seria do amarelo se ninguém gostasse dele.
Claro que amar o bom, o belo, o saudável, o dia, o prazer, o útil, o rico, o glorioso, o amável, não custa nada a ninguém, e que outra sociedade levou mais longe o hedonismo como religião, do que a sociedade de consumo?
Mas que outra sociedade prova também melhor as consequências trágicas desse hedonismo? Não será paradoxal que cheire tanto a morte, a sangue, a violência, a doença, numa sociedade que baseia a sua ideologia de massas no constante elogio da vida, da paz, da saúde ? "Quilómetros de prazer" ...gritam eles, na RTC, na RTP!
O nosso medo à morte, a nossa vergonha à morte, é a causa principal de que esta sociedade, este sistema, não seja outra coisa do que um gigantesco campo de morte.
Quando releio o Tao Te King, é para tentar instintivar esse supremo sexto sentido que perdemos, o sexto sentido da dialéctica ou da compreensão dos contrários sem que , os entendamos como contrários. Não saber isso como quem respira - aí reside, a meu ver, a raiz de todo o mal, de toda a doença que se respira na cultura ocidental.
Reaprender a vida é reaprender, por exemplo, a dialéctica taoísta. Todo o maniqueísmo (ver só um lado da realidade) revela-se na prática pelo tal "beatismo": querer convencer os outros de que estou sempre numa boa, quando, na realidade e na verdade, eu só posso estar numa boa e má ao mesmo tempo, é maniqueísta, hipócrita e beato.
A alegria (como o prazer, o amor, a liberdade, a fé) é um breve relâmpago na infinita noite da Tristeza humana.
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O MEU ÓDIO A HEDONISTAS E BEATOS(*)
(*) Este texto de Afonso Cautela nem sequer como carta a CF foi talvez enviado, permanecendo, portanto, totalmente inédito
21-5-1989
A propósito do Krishnamurti, em que falámos, encontrei essa passagem no Virgílio Ferreira, página 351, do "Conta-Corrente-I".
Há uma referência à Beatriz, que tu também deves conhecer, pelos idos de Évora (Évora será uma coisa, pelo menos, que temos em comum, não?).
Parece-me a opinião do Virgílio demasiado severa, e quando ele fala do "beato manso" estou e não estou de acordo com ele. "Beatismo" é a palavra que costumo usar para designar uma das coisas que visceralmente mais detesto: toda a pretensão predicadora, moralista, “deves fazer isto” e "deves fazer aquilo”, enfim, a constante pregação em vista à morigeração dos costumes.
Se há peso-pesadelo na chamada nossa cultura ocidental e cristã, não sei se este - da predicação e do discurso-sermão - não será um dos mais arreigados.
Ora o esforço de Krishnamurti, colocando-se , desde logo, na perspectiva de uma fonte cultural descontaminada de poluições cristãs ocidentais moralizadoras, terá muita coisa criticável, a meu ver, mas não o seu beatismo: nesse caso o que diríamos de todo o ensaísmo ocidental, que é uma beatisse pegada.
Mas quando falo de "beatismo" como uma das coisas a que voto maior aversão, estou ainda a pensar num tal conceito de optimismo ou mesmo de alegria, com o qual, de facto, não consigo alinhar.
Ouvindo agora mesmo um extracto da "Ode à Alegria", da Nona Sinfonia de Beethoven( que os eurocratas elegeram em música publicitária da campanha eleitoral ao Parlamento de Estrasburgo...), penso mais uma vez o que tenho dito ou escrito em outras circunstâncias: a Alegria é algo de tão sagrado que temos que ter algum cuidado na palavra. Um pouco como a palavra Deus, um pouco como a palavra Amor, um pouco como a palavra Paz, um pouco como a palavra Liberdade.
Somos, neste caldo cultural em que estamos, demasiado levianos no uso de certas palavras, cuja carga de sagrado nos devia aconselhar maior prudência.
Falaste-me de uma viagem que fizeste (aos Açores, não foi?) e da "alegria" que apreciaste nos companheiros de viagem, por contraste ao que tínhamos referido como o meu "tremendismo", "pessimismo", "negativismo".
A questão é muito melindrosa, Carlos, e vou tentar tocá-la com o máximo de delicadezas: alegria que não seja arrancada da profunda tristeza que é a vida, que sentido pode ter?
Bach exemplifica, na música, o que eu gostaria de dizer a este respeito. Qualquer conceito extrai-se, sempre, do seu contrário: a saúde é o outro lado da doença, o prazer é o outro lado da dor, a liberdade é o outro lado da alienação, o dia é o outro lado da noite, (para outras dicotomias, ver "Diccionario de Sinónimos e Antonimos,"Ed Oceano, Barcelona, 198&).
E o que chamo "beatismo" , de um modo geral, é a atitude dos que se colocam só num termo desta dialéctica - geralmente considerado o "bom" - como se não existisse o outro termo, que é então repelido como o "mau".
O que eu penso - e é uma das démarches mais terríveis de toda a minha vida - é que aprender a viver é aprender a amar, com igual intensidade, o "bom" e o "mau", o "puro" e o "perverso", a "doença' e a "saúde", a "alegria" e a "tristeza”, a "esperança" e o “desespero"...
Costumo dizer, glosando esta minha estranha e rara filosofia: que seria do amarelo se ninguém gostasse dele.
Claro que amar o bom, o belo, o saudável, o dia, o prazer, o útil, o rico, o glorioso, o amável, não custa nada a ninguém, e que outra sociedade levou mais longe o hedonismo como religião, do que a sociedade de consumo?
Mas que outra sociedade prova também melhor as consequências trágicas desse hedonismo? Não será paradoxal que cheire tanto a morte, a sangue, a violência, a doença, numa sociedade que baseia a sua ideologia de massas no constante elogio da vida, da paz, da saúde ? "Quilómetros de prazer" ...gritam eles, na RTC, na RTP!
O nosso medo à morte, a nossa vergonha à morte, é a causa principal de que esta sociedade, este sistema, não seja outra coisa do que um gigantesco campo de morte.
Quando releio o Tao Te King, é para tentar instintivar esse supremo sexto sentido que perdemos, o sexto sentido da dialéctica ou da compreensão dos contrários sem que , os entendamos como contrários. Não saber isso como quem respira - aí reside, a meu ver, a raiz de todo o mal, de toda a doença que se respira na cultura ocidental.
Reaprender a vida é reaprender, por exemplo, a dialéctica taoísta. Todo o maniqueísmo (ver só um lado da realidade) revela-se na prática pelo tal "beatismo": querer convencer os outros de que estou sempre numa boa, quando, na realidade e na verdade, eu só posso estar numa boa e má ao mesmo tempo, é maniqueísta, hipócrita e beato.
A alegria (como o prazer, o amor, a liberdade, a fé) é um breve relâmpago na infinita noite da Tristeza humana.
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