IDEALISTA 1972
1-2 - 72-08-22-di> = diário de ideias - os guardas do gulag – inédito ac de 1972 – chave ac – diário pessoal e de um idiota – esse vício idealista de ser livre –homenagem a galileu
SEI QUE NÃO VALE A PENA QUERER SALVAR O MUNDO (*)
(*) Este texto, obviamente inédito, merece um carinhoso cinco estrelas. Lá de vez em quando, acho que conseguia acertar. Enfim, coisas. Contemporâneo das minhas colaborações no «Notícias da Amadora», resume bem o estado de espírito dominante desses anos imediatamente anteriores ao 25 de Abril. Era a obsessão de me comparar ao Galileu... e como me sentia perseguido como o Galileu. É preciso ter lata, Afonso! Mas lata foi o que nunca me faltou, lá isso...
22/8/1972 - Se os senhores pensam que um franco-atirador é necessariamente um pobre diabo que vive na inocência medieval de todos os males do Mundo, um romântico ignorante e um lírico abstracto, em suma, um irrealista e um parvo, mais ou menos desfasado em relação ao concreto do mundo e dos homens práticos, peço que rectifiquem vossa opinião.
Sei muito bem que vivo num país surrealista; que todo o acto quixotesco aqui é apenas ridículo; que toda a independência de espírito é suspeita e que está lixado todo quanto não alinhe num bando, num programa, num partido, numa tertúlia; que ninguém se importa com ninguém, que os “mass media” não vivem para servir o público mas para se servir dele; que tudo afinal é conforme a lógica do todo e não conforme a aberrante ilógica dos revoltados particulares como eu; sei que qualquer firma de electrodomésticos pode mandar calar um cronista, porque a firma pode pagar a um advogado e não há nada que não se possa provar desde que, para isso, haja dinheiro a prová-la; sei, pois, que a única coisa acertada é não fazer ondas, não criticar, não procurar assumir o partido do público pagante e (sempre) prejudicado, lesado, enganado, porque o primeiro (logo a seguir à firma) a escarrar no crítico franco-atirador será o próprio público (para isso está condicionado), em nome do qual o franco-atirador se arrisca às vezes para lá do risco, se arrisca a levar dos grandalhões uma grande bordoada; sei que não vale a pena querer salvar o mundo, porque o mundo tá bem tal como está, serve a quem serve e quem não conseguiu ainda lugar no banquete que se lixe, é apenas porque é parvo, lorpa, honesto ou doente; sei que o cinismo e o pirronismo são hoje as únicas atitudes que um pai de família deve assumir se não quer perder o emprego e prejudicar o futuro dos filhos, a carreira, o bom nome e a tranquilidade de espírito e de corpo; sei que, entalado entre os grupos de pressão que retalham o território a seu modo e gosto, o franco-atirador é cada vez mais excremento, excrescência, anomalia, indecência, aberração; sei inclusive, que nunca poderá levar longe a sua batalha porque, por definição, nem os próprios amigos o apoiarão no momento decisivo e crítico; sei que um franco atirador só noutro franco-atirador tem um amigo e que, por definição, vivem afastados um do outro, dispersos, sem possibilidade de permuta e ajuda, sem fazerem clã, sem se barricarem em grupo, partido, programa e etc (aliás, tudo se mobiliza para intensificar essa desintegração e desunião, tudo favorece o desentendimento entre franco-atiradores); sei, portanto, que face aos hotéis de lª , aos grandes progressos ferroviários, aos mitos tirânicos e sangrentos, ao cinismo quotidiano e ao quotidiano terror, não vale a pena oferecer resistência: a resistência individual já não se usa e é chata, parva, incómoda para o grupo que em si aninha e cultiva a mediocracia; à medida que a sociedade se totalitariza, o franco-atirador torna-se definitivamente obsoleto, sei disso tudo, podem crer.
E, no entanto, É PRECISO AGIR COMO SE NÃO SOUBESSE. Quanto mais conheço a inutilidade das crónicas sobre o quotidiano, dos poemas para a gaveta, das críticas para o lixo, das reportagens para o cego, dos ensaios (novamente para a gaveta), mais se me impõe a necessidade desse gratuito, desse ser por ser; quantos mais risos de ironia e mofa me cercam, quanto mais amigos me batem nos ombros a recomendar prudência e mudança de rumo, temperança, quanto mais ouço proclamar que quixote é ridículo e ridícula a (boa) fé e a luta, mais essa fé me parece inevitável de ser vivida e essa luta de ser travada; quanto mais me ameaçam com o chicote da chacota (ou da punição), mais a ideia de justiça me aparece clara e imperativa; quanto mais firmas de electrodomésticos me obrigam a abjurar, mais camarada de Galileu me sinto e mais digno de lhe admirar a memória; quanto mais a mediocridade nos afoga, submerge e nos tenta convencer, menos vencido pela mediocridade me considero; quanto mais me avisam para calar a palavra indignada (por amor à justiça) contra o disparate, a boçalidade, a venalidade e a violência, quanto mais me provam os riscos que a resistência à enxurrada envolve, mais o vício idealista de um espaço puro e belo e decente me anima ; quanto mais a doença, o ruído, a porcaria, a sujeira moral e das ruas nos afoga, mais esperança ponho nas palavras que escrevo, na ironia que uso, nos prepotentes que enfrento; quanto mais recordo as humilhações dos mangas de alpaca, dos burrocratas, dos funcionários da conveniência, dos funcionários da prudência, quanto mais e melhor sei como sabem, como podem destruir a sensibilidade de um homem , mais cego e surdo me faço às velhacarias, às humilhações, às ameaças e exigências, de abjuração; quanto mais baixo julga aquele democrático ter-me rebaixado, mais acordado fico para a ilusão, para o sonho, para a liberdade e a dignidade e a honra de ser um homem que não colabora com nenhuma Abjecção. Ainda quando disse que sim, porque o obrigaram a dizer que sim.
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(*) Este texto, obviamente inédito, merece um carinhoso cinco estrelas. Lá de vez em quando, acho que conseguia acertar. Enfim, coisas. Contemporâneo das minhas colaborações no «Notícias da Amadora», resume bem o estado de espírito dominante desses anos imediatamente anteriores ao 25 de Abril. Era a obsessão de me comparar ao Galileu... e como me sentia perseguido como o Galileu. É preciso ter lata, Afonso! Mas lata foi o que nunca me faltou, lá isso...
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SEI QUE NÃO VALE A PENA QUERER SALVAR O MUNDO (*)
(*) Este texto, obviamente inédito, merece um carinhoso cinco estrelas. Lá de vez em quando, acho que conseguia acertar. Enfim, coisas. Contemporâneo das minhas colaborações no «Notícias da Amadora», resume bem o estado de espírito dominante desses anos imediatamente anteriores ao 25 de Abril. Era a obsessão de me comparar ao Galileu... e como me sentia perseguido como o Galileu. É preciso ter lata, Afonso! Mas lata foi o que nunca me faltou, lá isso...
22/8/1972 - Se os senhores pensam que um franco-atirador é necessariamente um pobre diabo que vive na inocência medieval de todos os males do Mundo, um romântico ignorante e um lírico abstracto, em suma, um irrealista e um parvo, mais ou menos desfasado em relação ao concreto do mundo e dos homens práticos, peço que rectifiquem vossa opinião.
Sei muito bem que vivo num país surrealista; que todo o acto quixotesco aqui é apenas ridículo; que toda a independência de espírito é suspeita e que está lixado todo quanto não alinhe num bando, num programa, num partido, numa tertúlia; que ninguém se importa com ninguém, que os “mass media” não vivem para servir o público mas para se servir dele; que tudo afinal é conforme a lógica do todo e não conforme a aberrante ilógica dos revoltados particulares como eu; sei que qualquer firma de electrodomésticos pode mandar calar um cronista, porque a firma pode pagar a um advogado e não há nada que não se possa provar desde que, para isso, haja dinheiro a prová-la; sei, pois, que a única coisa acertada é não fazer ondas, não criticar, não procurar assumir o partido do público pagante e (sempre) prejudicado, lesado, enganado, porque o primeiro (logo a seguir à firma) a escarrar no crítico franco-atirador será o próprio público (para isso está condicionado), em nome do qual o franco-atirador se arrisca às vezes para lá do risco, se arrisca a levar dos grandalhões uma grande bordoada; sei que não vale a pena querer salvar o mundo, porque o mundo tá bem tal como está, serve a quem serve e quem não conseguiu ainda lugar no banquete que se lixe, é apenas porque é parvo, lorpa, honesto ou doente; sei que o cinismo e o pirronismo são hoje as únicas atitudes que um pai de família deve assumir se não quer perder o emprego e prejudicar o futuro dos filhos, a carreira, o bom nome e a tranquilidade de espírito e de corpo; sei que, entalado entre os grupos de pressão que retalham o território a seu modo e gosto, o franco-atirador é cada vez mais excremento, excrescência, anomalia, indecência, aberração; sei inclusive, que nunca poderá levar longe a sua batalha porque, por definição, nem os próprios amigos o apoiarão no momento decisivo e crítico; sei que um franco atirador só noutro franco-atirador tem um amigo e que, por definição, vivem afastados um do outro, dispersos, sem possibilidade de permuta e ajuda, sem fazerem clã, sem se barricarem em grupo, partido, programa e etc (aliás, tudo se mobiliza para intensificar essa desintegração e desunião, tudo favorece o desentendimento entre franco-atiradores); sei, portanto, que face aos hotéis de lª , aos grandes progressos ferroviários, aos mitos tirânicos e sangrentos, ao cinismo quotidiano e ao quotidiano terror, não vale a pena oferecer resistência: a resistência individual já não se usa e é chata, parva, incómoda para o grupo que em si aninha e cultiva a mediocracia; à medida que a sociedade se totalitariza, o franco-atirador torna-se definitivamente obsoleto, sei disso tudo, podem crer.
E, no entanto, É PRECISO AGIR COMO SE NÃO SOUBESSE. Quanto mais conheço a inutilidade das crónicas sobre o quotidiano, dos poemas para a gaveta, das críticas para o lixo, das reportagens para o cego, dos ensaios (novamente para a gaveta), mais se me impõe a necessidade desse gratuito, desse ser por ser; quantos mais risos de ironia e mofa me cercam, quanto mais amigos me batem nos ombros a recomendar prudência e mudança de rumo, temperança, quanto mais ouço proclamar que quixote é ridículo e ridícula a (boa) fé e a luta, mais essa fé me parece inevitável de ser vivida e essa luta de ser travada; quanto mais me ameaçam com o chicote da chacota (ou da punição), mais a ideia de justiça me aparece clara e imperativa; quanto mais firmas de electrodomésticos me obrigam a abjurar, mais camarada de Galileu me sinto e mais digno de lhe admirar a memória; quanto mais a mediocridade nos afoga, submerge e nos tenta convencer, menos vencido pela mediocridade me considero; quanto mais me avisam para calar a palavra indignada (por amor à justiça) contra o disparate, a boçalidade, a venalidade e a violência, quanto mais me provam os riscos que a resistência à enxurrada envolve, mais o vício idealista de um espaço puro e belo e decente me anima ; quanto mais a doença, o ruído, a porcaria, a sujeira moral e das ruas nos afoga, mais esperança ponho nas palavras que escrevo, na ironia que uso, nos prepotentes que enfrento; quanto mais recordo as humilhações dos mangas de alpaca, dos burrocratas, dos funcionários da conveniência, dos funcionários da prudência, quanto mais e melhor sei como sabem, como podem destruir a sensibilidade de um homem , mais cego e surdo me faço às velhacarias, às humilhações, às ameaças e exigências, de abjuração; quanto mais baixo julga aquele democrático ter-me rebaixado, mais acordado fico para a ilusão, para o sonho, para a liberdade e a dignidade e a honra de ser um homem que não colabora com nenhuma Abjecção. Ainda quando disse que sim, porque o obrigaram a dizer que sim.
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(*) Este texto, obviamente inédito, merece um carinhoso cinco estrelas. Lá de vez em quando, acho que conseguia acertar. Enfim, coisas. Contemporâneo das minhas colaborações no «Notícias da Amadora», resume bem o estado de espírito dominante desses anos imediatamente anteriores ao 25 de Abril. Era a obsessão de me comparar ao Galileu... e como me sentia perseguido como o Galileu. É preciso ter lata, Afonso! Mas lata foi o que nunca me faltou, lá isso...
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