ORDER BOOK

*DEEP ECOLOGY - NOTE-BOOK OF HOPE - HIGH TIME *ECOLOGIA EM DIÁLOGO - DOSSIÊS DO SILÊNCIO - ALTERNATIVAS DE VIDA - ECOLOGIA HUMANA - ECO-ENERGIAS - NOTÍCIAS DA FRENTE ECOLÓGICA - DOCUMENTOS DO MEP

2005-12-01

CPT 1958

estela-3-ie>=ideia ecológica do afonso-polémicas com o meio ambiente–os guardas do gulag–mein kampf–os dossiês do silêncio–os dossiês de ecologia humana

OS INTELECTUAIS E A ECOLOGIA
II – O PRECONCEITO NEO-REALISTA(*)

(*) Este texto de Afonso Cautela foi publicado no jornal «A Capital» (Crónica do Planeta Terra), 2/12/1978

Do pré-conceito romântico com que o intelectual olha, quando olha, a Ecologia, falei aqui, a propósito de um artigo em que Maria Estela Guedes se propunha demonstrar aos amigos da Natureza como eles eram (como nós somos) anacrónicos, fora de moda, não progressistas e nada revolucionários.
O artigo saiu necessariamente gralhado - coisas do azar! - mas lá saiu.
Os intelectuais progressistas desta terra sempre foram exímios a censurar-me e se devo dezenas de carimbos azuis aos senhores censores do antigamente, não devo menos favores aos neo-realistas de ontem e neo-censores de agora.
Imagine-se: defender a Natureza, a vida e a qualidade de vida é ainda - para o (intelectual) progressista desta terra passadista - ser-se conservador, quiçá reaccionário e talvez ainda pior...A insultar sempre o neo-realista foi exímio. Virtude revolucionária só ele é que tem.
E do pré-conceito romântico saltamos para o pré-conceito miserabilista do progressista (neorealista).

I

Vem então o argumento-chavão, já gasto e regasto mas que ressurge sempre: Se é verdade que a nova geração se habituou ao conforto de muitos consumos que a sociedade pagará caro - em destruição de recursos e poluição do Meio Ambiente - e que o próprio consumidor pagará com a (sua) saúde e a (sua) qualidade de vida cada vez mais degenerada e deteriorada, eis que logo o pré-conceito miserabilista argumenta de que os pobres, as classes desfavorecidas não podem usufruir, igualmente, desses consumos e "benefícios", quer dizer, não têm direito a um cancro (a domicílio) por cabeça.
A estratégia miserabilista preconiza que todos - os pobres também - tenham acesso ao açúcar, ao enlatado, ao congelado, ao refinado, ao veneno, ao aditivo, ao corante, ao tóxico, ao antibiótico, ao plástico, ao objecto inútil e supérfluo, enfim, ao consumo patológico e proliferantemente cancerígeno.
A estratégia miserabilista com que o neo-realista ameaça o amador da Ecologia - considerado a priori um incurável reaccionário que critica os benefícios sem par do consumismo - propõe-se afinal uma socialização do cancro.
O famoso Serviço Nacional de Saúde e a famosa "socialização da Medicina" jamais põe em causa a intrínseca qualidade do sistema ou do serviço prestado. Não se indaga se é asneira. Preconiza-se é que a Asneira alastre e se multiplique. Se socialize.

II

Ora a vida, a qualidade de vida, a saúde, a segurança e a sobrevivência é igualmente comprometida pela pobreza dos que consomem pouco e mal como pela "prosperidade" dos que consomem muito e péssimo.
Se é a qualidade a ter em conta, uns e outros consomem mal. E os que consomem mais, eis que consomem ainda mais mal.
O que o amador da Ecologia defende - enquanto o “progressista” o ataca - não é mais, muito mais, sempre mais. É melhor, menos mau e muito menos mau do que hoje.

III

Não é por acaso que Portugal participa do quadro patológico típico dos dois extremos: a cólera e as doenças do ciclo hídrico são periodicamente endémicas entre nós, a mostrar que somos um país com muitos bairros da lata, formados e desenvolvidos (paradoxalmente?) em torno dos progressivos pólos industriais que, apesar de tudo, subdesenvolvidamente por aqui foram disseminando dizendo que era tudo para bem da gente.
Mas o alcoolismo, as doenças cardíacas e o cancro são igualmente endémicas.
Ora se estas doenças degenerativas, doenças da poluição ou doenças do consumo como alguns lhes chamam - estatisticamente dominantes como causa de mortalidade e morbilidade - são causadas exactamente por consumos típicos da burguesia (gorduras animais, proteínas, calorias, açúcar, cereais refinados, farinhas brancas, enlatados, bebidas alcoólicas, etc) eis que o argumento é objectivo-estatístico e não subjectivo-romântico.
Como descalçar a bota?
Sempre no mundo dos fantasmas que lhe encham a cabeça, o (intelectual) neo-realista dirá que uma vasta camada da população portuguesa ainda não tem acesso aos consumos dos ricos.
Mas a verdade e o facto é que a estatística nos atribui uma das mortalidades e morbilidades mais "ricas" da Europa Rica.
A realidade excede , de facto, o pré-conceito, seja ele romântico e umbilicalista, seja ele miserabilista e neo-realista: porque a (triste) realidade é que, bem ou mal, a caminho do socialismo ou do capitalismo, o sistema já conseguiu pôr quase todos a consumir o que é fundamental na degeneração biológica e na desqualificação da vida.
Pobre e ricos apanham com adubos químicos na agricultura e pesticidas nas colheitas: e qualquer desses benefícios químicos são, a médio e longo prazo, pré-cancerígenos.
Pobres e ricos são vacinados e ganham alergias para o resto da vida.
Pobres e ricos levam doses letais de antibióticos de modo a que fiquem escravos da medicina química até à eternidade.
Pobres e ricos, em vez de cereal integral (que alimenta), levam para casa cereal refinado, que desalimenta e cria carências além de provocar o cancro no cólon por falta de celulose favorável ao movimento peristáltico.
Pobres e ricos estão sujeitos à patológica cidade do fumo, do escape, do chumbo na gasolina, do ruído, da porcaria, do cartaz, da sloganmania.
Pobres e ricos são diária e horariamente alienados pela super-estupidez da publicidade e dos "mass media" em geral.
Pobres e ricos são chacinados na estrada por sua excelência o automóvel, símbolo de facto burguês que o neo-realista não dispensa...
Pobres e ricos consomem todos os cufóleos que lhes impingem mais o respectivo colesterol de transacção.
Pobres e ricos consomem margarina com ácido sulfúrico e todos gritam por mais, porque torna tudo mais apetitoso.
Pobres e ricos consomem açúcar industrial (quando não glutamatos) desmineralizando o corpo e descalcificando o esqueleto sem diferença de raça, credo, sexo ou classe...
Pobres e ricos estão sujeitos ao stress dos transportes e serviços públicos, à paranóica burocracia das bichas e do papel selado.
Pobres e ricos são submetidos ao ''bang'' supersónico quer do Concorde, quer do Tupolev...
Pobres e ricos banham-se democraticamente nas ondas oleosas da nafta petroleira de todos os imperialismos que sulcam os oceanos.
Pobres e ricos contraem colibacilose nas praias suburbanas, cloaca de esgotos não tratados.
Pobres e ricos ficam sem rios, sem fauna, sem flora, sem campo, sem água nas fontes.
Pobres e ricos consomem, uns mais outros menos, tudo quanto serve ao tecnocrata para continuar justificando as indústrias instaladas, a começar nas centrais nucleares devido à demanda crescente de energia por parte das insaciáveis populações energívoras...
Neo-realistas defenderam Alqueva para irrigar o Alentejo, quando eles sabiam muito bem que Alqueva é para servir as multinacionais de Sines e suas vorazes petroquímicas.
Pobres e ricos são afectados pela hemorragia de combustível, energia, recursos e matérias-primas que são as megalomanias imperialistas da corrida atómica, da escalada espacial, da maratona supersónica, das olimpíadas, enfim, de todos os gigantismos em que os imperialismos são férteis, dada a recíproca concorrência.
Pobre e ricos consomem o mau, uns mais outros menos, conforme o poder de compra. Para lá da questão quantidade, é a questão da qualidade que a Ecologia põe.

V

O pré-conceito miserabilista coloca o problema dos consumos de maneira totalmente errada. O neo-realista tem nos consumos a pedra de toque da sua estratégia reformista, por isso se pica tanto e logo... Diz que a revolução cultural é para depois, que a qualidade logo se vê e que para já é a quantidade.
De facto, enquanto pedra de toque da revolução cultural, a crítica aos consumos assusta o neo-realista.
Enquanto as pessoas (pobres, ricos, remediados, proletariado, burguesia) não reciclarem hábitos, não fizerem greve geral ao supermercado), ao celofane, à publicidade) , ao plástico e à máquina de Alienação, o sistema industrial seguir, tal e qual, a produzir os mesmos objectos, venenos, tóxicos, refinados, congelados, enlatados, sintéticos. Ao sistema de consumos, enquanto tal, até lhe interessa a democratização dos consumos: pois não é a saturação de mercados e consequente alargamento, um dos problemas que se põem ao sistema de pechisbeque, sempre em crise?
É a socialização do cancro, afinal, para onde todos apontam, directa ou indirectamente, em nome do capitalismo ou em nome do socialismo.
- - - -
(*) Este texto de Afonso Cautela foi publicado no jornal «A Capital» (Crónica do Planeta Terra), 2/12/1978
***